Foto: Penske Entertainment - Paul Hurley
Doug Boles detalha bastidores das negociações com Chevrolet e Honda, fala sobre orçamento, calendário, regras e a missão de manter a categoria forte, relevante e sustentável
Por trás do discurso público otimista, existe uma corrida silenciosa acontecendo nos bastidores da Fórmula Indy. E ela não acontece nas pistas, mas nas salas de reunião. Na segunda parte da longa entrevista concedida por Doug Boles a Marshall Pruett, no podcast do jornalista, o presidente da categoria detalhou com franqueza rara os desafios que cercam o período de transição até 2028 — ano do novo carro e da nova geração de motores — e deixou claro que manter Chevrolet e Honda no grid é a prioridade absoluta.
Segundo Boles, uma de suas primeiras ações ao assumir o cargo foi sentar-se pessoalmente com os dois fabricantes, poucos dias depois do anúncio oficial de sua nomeação. O objetivo era entender o que cada um espera da IndyCar, quais são as insatisfações acumuladas e o que seria necessário para garantir continuidade após o fim dos contratos atuais, que vencem em 2026. Ele reconhece que o ambiente havia passado por “águas turbulentas” pouco antes de sua chegada e que reconstruir confiança se tornou essencial.
Desde então, o tema passou a ocupar boa parte de sua agenda. O dirigente revelou que cerca de 75% do seu tempo recente tem sido dedicado a evitar um cenário considerado crítico: chegar ao início de 2026 com anúncios negativos sobre a saída de fabricantes. Chevrolet e Honda, lembrou, são pilares históricos da categoria, sustentando a Indy há décadas, e perder qualquer um deles teria impacto direto esportivo, financeiro e simbólico.
Boles afirmou que as conversas seguem abertas, francas e positivas. Há sinais encorajadores vindos de ambos os lados, ainda que nada esteja fechado oficialmente. Ele reforça que o crescimento vivido pela categoria em 2025 torna ainda mais urgente garantir estabilidade para 2026 e 2027, evitando que qualquer incerteza freie esse momento de expansão.
Outro ponto importante abordado foi a situação da PREMA Racing. A equipe europeia teve um ano de estreia marcante, coroado pela pole position nas 500 Milhas de Indianápolis, um feito considerado extraordinário. Apesar das incertezas sobre sua permanência, Boles diz que a IndyCar mantém diálogo constante com a direção da equipe e se coloca como parceira, oferecendo apoio e escuta. Segundo ele, a PREMA segue trabalhando para viabilizar sua continuidade e há otimismo de que uma definição positiva surja nas próximas semanas.
Ao falar sobre regulamentos, Boles reconheceu algo que equipes e engenheiros comentam há anos: o livro de regras da IndyCar tornou-se complexo demais. Com adendos, boletins técnicos e interpretações acumuladas ao longo do tempo, entender completamente o regulamento virou um desafio até para profissionais experientes. Por isso, uma das metas centrais da gestão atual é reescrever e reorganizar o regulamento, tornando-o mais claro, direto e funcional. Esse trabalho será feito aos poucos, com a meta de chegar a 2028 — quando estreia o novo carro — com um conjunto de regras mais limpo e lógico.
Ele citou como exemplo situações como a quebra precoce do motor de Scott Dixon em testes, que acabou contando oficialmente dentro da cota anual. Casos assim geram debates internos e ajudam a alimentar discussões sobre ajustes futuros, embora mudanças imediatas nem sempre sejam viáveis por questões técnicas e contratuais.
Sobre possíveis alterações esportivas, Boles confirmou que a ideia do “tanque virtual” chegou a ser discutida, especialmente pensando em pistas ovais curtas e no desgaste dos pneus. No entanto, a proposta foi deixada de lado por enquanto. Segundo ele, a Firestone avançou bastante nos testes e no desenvolvimento dos compostos, reduzindo preocupações relacionadas a carga, velocidade e segurança. Além disso, o próprio conceito do tanque virtual mostrou-se difícil de explicar e operacionalizar.
Um dos trechos mais relevantes da entrevista trata do impacto financeiro do novo ciclo técnico. Boles reconhece que 2028 exigirá investimentos pesados das equipes, com custos adicionais que podem chegar a cerca de 3 milhões de dólares por carro, considerando chassis extras, peças sobressalentes e adaptação completa ao novo pacote. Por isso, a IndyCar trabalha para minimizar esse impacto.
Ele explica que parte dos custos de desenvolvimento — os chamados “non-recurring costs” — está sendo absorvida pela própria categoria, com apoio direto de Roger Penske, evitando que esses valores sejam repassados integralmente às equipes. A filosofia, segundo Boles, é simples: o novo carro não pode ser mais caro do que seria comprar um equipamento totalmente novo hoje. A transição precisa ser financeiramente viável.
Nesse contexto, entra também o esforço para conter gastos dos fabricantes. Com montadoras globais revendo investimentos e absorvendo prejuízos bilionários em programas elétricos, o risco de cortes em marketing e automobilismo é real. Por isso, a IndyCar trabalha junto a Chevrolet e Honda para reduzir custos operacionais e tornar o programa mais sustentável a médio prazo.
Um reforço importante nesse cenário é o aumento do Leaders Circle. Boles confirmou que Roger Penske autorizou um acréscimo de 11 milhões de dólares no fundo destinado às equipes entre 2026 e 2028. Na prática, isso representa cerca de meio milhão de dólares adicionais por contrato, ajudando diretamente no caixa dos times e oferecendo mais previsibilidade financeira.
Quando o assunto passa para o calendário, o presidente da IndyCar admite que há desejo de crescer, mas com cautela. Ele reconhece que existe espaço para ampliar o número de corridas, mas reforça que não basta “colocar uma prova a mais”. Cada evento precisa ser forte, sustentável, bem promovido e abraçado pela comunidade local. Não adianta correr em lugares vazios ou sem engajamento.
Nesse ponto, ele destaca como prioridade absoluta o retorno da categoria ao Nordeste dos Estados Unidos, região estratégica e atualmente ausente do calendário. Além disso, vê potencial em explorar melhor parcerias com a FOX, especialmente após bons resultados de audiência em transmissões posicionadas próximas a jogos da NFL. A experiência recente mostrou que correr após partidas de futebol americano pode gerar grande visibilidade, abrindo caminho para uma leve extensão da temporada no futuro — embora nada radical.
Boles admite que adoraria ver um calendário com mais de 17 provas, talvez chegando a 18 ou um pouco mais, mas deixa claro que isso só acontecerá se cada novo evento agregar valor real à IndyCar como produto.
Por fim, ele falou com entusiasmo sobre a transformação do público da categoria. Segundo Boles, um dos maiores orgulhos da gestão atual é ver arquibancadas mais jovens, mais diversas e mais plurais. Ele lembra que, quando começou no Indianapolis Motor Speedway, o público era majoritariamente masculino, branco e mais velho. Se isso não mudasse, a sobrevivência do esporte estaria ameaçada.
Hoje, iniciativas como o Snake Pit, eventos urbanos, ativações culturais e experiências voltadas a novos públicos ajudam a atrair jovens que talvez nunca tivessem considerado ir a uma corrida. A estratégia, segundo ele, é simples: criar portas de entrada. Fazer com que as pessoas cheguem pelo entretenimento, pela música ou pela experiência social — e depois descubram a paixão pelas corridas.
Boles resume essa filosofia com uma imagem simbólica: quando vê pais chegando ao autódromo de mãos dadas com seus filhos, sente que o trabalho está funcionando. Para ele, conquistar a próxima geração é um trabalho diário, que exige esforço ativo, presença e acolhimento. Não basta abrir os portões — é preciso ir até as pessoas e convidá-las a entrar.
A entrevista deixa claro que, entre desafios financeiros, negociações complexas e mudanças estruturais profundas, a Fórmula Indy vive um momento decisivo. O caminho até 2028 exige equilíbrio, diálogo e visão de longo prazo. E, nas palavras de Doug Boles, tudo isso só faz sentido se resultar em uma categoria mais forte, sustentável e conectada com o futuro.


